canções

canção do jequitibá


Nas rugas ressequidas da paisagem,
inescrutável totem,
cavando a voragem
do nadir.


Salta em ancestral ascensão,
transpostas gerações de homens,
mirando o açafrão
do zênite.


Destila do sol e do chão
o azeite e o elixir.
Ancião.


Estrangeira voz de areia e sal:
harmatã na floresta
tropical.


messalirana


Cego olhar albino,
os seios de Messalirana me perscrutam.
Crustáceos troglóbios;
Profunda gruta.


Tentáculos -- vampirotêutis,
As ninfas de Messalirana batem asa
(Aurora dedos róseos)
e envolvem o mundo: madimbus.


Injusto, corcunda,

anseio a penumbra da catedral.

Pois não é pecado, afinal?:

A mão calejada lamber tão glabra bunda.


entre sonhos e...


Entre sonhos e pernilongos
Tenho um sono agitado
Suor escorre na noite escura
Quanto calor opaco


Não há um cobertor que cubra
Não há um guarda-chuva
Que proteja esse império
De mistério e saúvas


A estrela matutina
O açoite dos motores
Nada ilumina essa penumbra


O zumbido na orelha
A centelha na janela
Não penetra a pálpebra fechada


Tudo é febre e alumbramento
Limbo e teofania
O corpo inerte não denuncia
A polução que dentro


Dançam deuses, orixás e ninfas
Térmitas, fosfenos, seios
Pisoteando as pupilas
Que orbitam no avesso


Último país fértil
Contra a vigília estéril
Não me acorde mãe
Não me acorde, ó mãe
Não me acorde ainda
Não quero cruzar as fronteiras dessa hipnose


Espírito enfim liberto
Dos grilhões do corpo
Não me acorde mãe
Não me acorde, ó mãe
Não me acorde ainda
Aqui realizo a utopia de minha gnose


Quando chega o inevitável
Desvelar das cortinas
Tanta luminosidade
Dói
Dói
Dói


cuidado conceição


Meu coração inda destila
O perfume de Nabila
Na fuligem de Abril


Se no sertão existe tanta flor divina
Porque diesel e gasolina
Glifosato e atrazina
É o que respira esse Brasil?


Faca amolada em pele fina
A mão macia de Marina
Me deixou uma cicatriz


Tem sangra d'água pra fechar minha sutura
Também tem que haver a cura
Pra sangria pra fissura
Que machuca esse país


Amanhã pego a viola
Vou pra onde o Onça mora
No homizio do não-lugar


Eu aqui sou só escória
Que a vertigem da História
Atropela e devora
Nem no colo da Izidora
Posso mais me consolar


Mundo salgado, Brasil amargo
Doce o beijo que Tiago
Me roubou no carnaval


Se no cerrado há tanta baga, pomo e drupa
Por que o povaréu só chupa
Bala de hortelã, bituca
Osso, caroço, carepa
Cassetete, pedra e pau?


No Mato Dentro uma chinesa
Jin Hua, vulgo Teresa
Escavou jazida em mim


Meu sofrimento foi de encher uma represa
Quando ela foi-se embora
E o que era montanha outrora
Virou ponte em Pequim


Toma cuidado Conceição
O amor é um furacão
Varre tudo sobre a terra


Toma cuidado Tabuleiro
O amor é bandoleiro
Faz de tudo por dinheiro
Rouba da fulô o cheiro
E aplaina a serra


Com centenas de maxilares e molares de máquinas hidráulicas, dragas
Fazendo sangrar a hematita, o nióbio, o carvão, o manganês, o pré-sal
E o coração ingênuo e sentimental
Que se ofereceu quase de graça


E depois do vendaval
Nina o anjo da história
Com a cantilena do progresso
E promessas de compensação ambiental


A lua é clara, o sol vermelho
No avesso do espelho
Ninguém sabe o que floresce


Se o mistério é metade da paisagem
Carece de ter coragem
Que a flor do fim da romagem
Muita gente desconhece


lágrimas de gil


Se Gilberto Gil até chorou
Pelo Brasil
Que ainda não é
Mas que ele já viu
No que pode vir a ser
E que outros viram também


Então quem
Sou eu
Pra querer com meu
Cinismo arredio
Não olhar além e ver?


Que além do cinismo vazio
Neoliberal
E além do mal
Mais que cínico, mau
Há um Brasil bem maior


Um Brasil sem mito fundador
Sem anjo exterminador
Um Brasil Brasil
Que só o Brasil pode ser
Concreto e macio
Como o que se cristalizou
Nas lágrimas de Gil


luzes


Luzes
Enfim perfurarão o dossel
E invadirão a selva escura
Que turvava a visão
Das três raças tristes
(E quantas eram as três?)
Pra que se revelasse a cor do céu


Onde
Reinara até então o horror, o horror
De um corpo nu
Desnutrido e mau


Luzes
Luzes elétricas
Expurgavam os fantasmas informes
E ofuscarão os seus nomes inscritos na noite eterna
De confusas taxonomias


(E quantas eram as três?)


Vozes
Instilavam sabedoria
Sufocam canções
Fumegarão abrindo estradas
Na densidade do nada


Cruzes
Falos
Emergirão com a carne morta dos jequitibás
E o véu das matas se rasgava
Parindo a razão


Luzes
Luzes
Irradiam de espelhos


tanto mar


Imperpetuáveis ninfas
No ciberespaço do céu de Hong Kong
Sombras se esvaindo no juncal


Fauno delirando entre bombas
Abraçando o sonho e o real
Amassando o ar


Incomunicáveis corpos
Pulsam no espelho elétrico do mar de Bangkok
Hostes se adensando no jornal


Falos balas gás lacrimogêneo
Náufrago no artificial
Monte Santo Paz Celestial


Myanmar Myanmar Myanmar Myanmar


Quem sabe as almas toquem-se afinal
Nas vagas calles vogues sol de Medellín
Infinitas almas


homúnculo


Depois de me arrancar do barro sem forma
E me moldar com mãos severas de oleiro
E educar meu gozo no seu leito


Depois de hipnotizar a terracota
Coagular o albúmen de meu sêmen
E tatuar minha tez com o sinal do golem


Depois de me trincar a asa torta
Puir com a espuma dos dias a argila
E esfarelar-me a pele quebradiça


Você despreza agora a sua obra
(Mais morta quanto mais você retoca
Com a máscara dessa têmpera diáfana)
E bebe o vinho na boca de outra ânfora


exília

letra: lfo
música: thiago diniz


Um dia eu vou pra rua
— calada e desarmada —
e multidão nenhuma,
nenhuma amargura,
virá na madrugada.


Num pijama irreal
e com o corpo rasura-
do — mas nenhum sinal
de dor ou atadura —
um dia eu vou pra rua.


Um dia eu vou pra rua
perfeita travesti.
Plástico barro espuma
vapor lâmina triz.
Um dia eu vou pra rua
perfeita travesti.
Noite da noite escura
Vou me despir.


Um reino não se funda
no seio de outro reino.
Um dia eu vou pra rua
e assentar o exílio
em meu próprio seio.


o peso do chumbo da sombra da flor

letra: lfo
música: thiago diniz
a partir de um poema de matheus ligeiro


Elefanta
Ganesha
Proteja os quilombos daqui
Ontem teve tristeza
Amanhã vai ter reza
O meu santo não despreza a dor de ninguém


Mãe cigana
Sidarta
Aparta o mal do coração
Aconchega em seu seio
Esse menino feio
E me ensina a crescer pra romper o véu da ilusão


Iemanjá
Netuno
Me uno às águas de seu mar
Árvore que sustenta
Onde prisma e placenta
Arrebenta e exubera cardumes de lumes e escuridão


O peso do chumbo da sombra da flor
O peso do chumbo da sombra da flor


vá para o norte

letra: lfo
música: thiago diniz


me sinto um pouco solitário
caminhando pra bahia
chego em hokkaido


o sertão é o mundo inteiro
mas nasci com essa sina
ser brasileiro


minha terra tem palmeiras
não entendo essas línguas
tão estrangeiras


gosto muito de fulana
acredito na vacina
não tenho grana


mundo mundo vasto mundo
se eu soubesse outra rima...


cinema

letra: lfo
música: daniel tamietti


Preguiça que de mim se apossa
Imposta pela força oposta à força
(Inércia)
Lei de toda matéria
Mãe da opulência
Pai da miséria


Movimento é quando a natureza erra


lotófago

"No dezeno aos Lotófagos arribo,
Que apascenta uma planta e flor cheirosa.
Jantamos, feita aguada; envio arauto
Com mais dous a inquirir de pão que gente
Lá se nutria. Aos três em nada ofendem,
Mas lhes ofertam loto; o mel provando,
Os nossos o recado e a pátria esquecem,
Querem permanecer para o gostarem."
[ODISSEIA, tradução de Odorico Mendes]


Olor
Florolor
Lotoperfumegante
Perfragância
Penetrável-penetrante
Fermentúmido
Açúcar nutrifauna ancestral.
Madura viçofruta
Ó dulcifagofuga em que me lanço
(Mon rêve s'aboucha souvent à sa ventouse)
Caldo cálido que secreta
(segredo)
sobre a calipétala rósea
gota de orvalho
melíflua


canção da lobeira


O mênstruo da lua cheia
Tingia o branco dos lençóis no varal
E o manto da madrugada
O nada varava o espelho
Seios pendiam verdes sóis argentos entre os ramos da lobeira


O vento assobiava anunciando a voz do encoberto
Cantou a alma-de-gato, a cerração cegava mas eu vi


O ar prenhe de açúcar nauseava quem sentisse o cheiro
Da pétala de vulva, e feito uma saúva um vulto eu vi


Eu vi o matuto
Provar um fruto
Adrede virar
Lobisomem-guará
Ouvi no escuro
Um latido ou uivo
Um grito
E o bicho me olhou
O bicho...


O monstro, a lua cheia
No canavial, na capoeira
Sem rastro...


bicho antissocial (autorretrato)


Este bicho tão infenso
Ao contato social
Dir-se-ia um ouriço
Visto o prazer intenso


Isto é, pavor imenso
Com que eriça cada espinho
Como fosse um punhal


Recolhido na penumbra
Ele engendra estranhas formas
Talvez seja uma aranha
Paciente e sempre muda


Arredia e carrancuda
Que assusta quem a olha
Assustada por igual


Foge feito lagartixa
Se percebe algum sinal
De amigo ou ameaça
Vindo lhe fazer visita


Criatura esquisita
Sob a dura carapaça
Quem será esse animal?


meu nome é legião


Não tenho apenas frente e verso
Não sou só côncavo e convexo
Não me circunscrevo a uma só razão


Vivo entre a sombra e o reflexo
Sou corpo frágil, mas concreto
Carne viva em contínua pulsação


Sujeito múltiplo e complexo
Não encerro só dois sexos
Não tateio o mundo só com duas mãos


A pele em que me manifesto
Direito e avesso e avesso e avesso
Transpira entre a multidão


Não caibo dentro do que meço
Encolho, cresço, atravesso
Corpo negro em eterna expansão


Explodo feito um universo
Destruo depois recomeço
Sou quando o sim engole o não


Me matam, mas eu nunca cesso
Me fecham mas eu sou aberto
E só eles não passarão


Porque meu nome é legião


paisagem


Um avião ocasional
Marulho da avenida
E a branca cicatriz boia no azul


Incêndios no horizonte
Horizonte nenhum


Revoada, alta tensão
Arrulhos no telhado
E o farfalhar elétrico do quarto


Espelhos em silêncio
Silêncio sob o chão


Um diabo ri calado na televisão


perfume


perfume
atmosfera
respiro
o céu fugaz


um nume
cega conversa
fulgor de sexo volátil no ar


sei
que o corpo não passa da imagem que exala do espelho
lembrança do cheiro de luz


sei
que tudo é simulacro e é por isso que eu fumo o ar da cidade
que me invade e me envolve em fumaça em ruído
em música


em brisa
vapor barato
sussurros
ventos zefirais


perfume
atmosfera
me intoxicando de lira e de gás


sei
que tudo é vaidade debaixo do sol


sei
que é fotografia


seis faces de um fauno


Diante dessa imagem fugidia, não importa se sonhada ou real, o fauno deseja:


1.
Construir sobre o vidro
uma torre incoerente de objetos empilhados
sabendo que amanhã ou depois tudo desabará.


2.
Deixar-se queimar.
Por que nada desaba
e o amor nasce como magma
para tornar-se rocha ígnea depois da erupção
(cicatrizes que a pele da paisagem ostenta como insígnias).


3.
Lutar contra a linguagem
para que, entre o silêncio e o gaguejar,
ela traduza o espasmo do gozo
o desejo sem falta
o cinema inventado no nervo óptico
tudo o que não foi feito para ser dito
que está no fundo do corpo
(mais animal que o animal)
e em algum lugar imaginado
(mais alado que a razão).


4.
Amassar o ar
Abraçar a água
Agarrar o fogo


Só a solidez da terra é impalpável.
As ninfas fluem:
Não há perpetuá-las
Nem fixar sua forma.


(Ah, se os dentes alcançassem o coração viçoso!
Se os pés de bode pisassem a secreta ilha
Cujo solo úmido nutre essas frutas altas que as garras não alcançam!
Não babaria a avena solitária).


5.
Cultivar a obsessão
Fabricar e acumular um museu de objetos inúteis
(Fios de cabelo, retratos, desenhos, sons, gotas d'água, folhas de mangueira, esse poema)


6.
Cair nas armadilhas da natureza:
ser híbrido é ser vítima do excesso.
Cravar as unhas no inevitável-impossível
Até sangrar